$ \def\HH{\mathbb{H}} \def\RR{\mathbb{R}} \def\CC{\mathbb{C}} \def\Isom{\mathrm{Isom}} $

Um passeio pelo mundo de geometria hiperbólica

Aula 1

Rafael Siejakowski
Programa de Verão 2022
ICMC, USP São Carlos
5–14 de janeiro de 2022

Geometria do plano

Euclides: geometria do plano e do espaço

  • Os “Elementos”: abordagem axiomática, mas com intuições visuais.
  • Séc. XX: novo sistema de axiomas proposto por D. Hilbert.
  • Formalismo em matemática – axiomas e teoremas não têm nenhum “significado” em si.

    Se a nossa hipótese é sobre qualquer coisa e não sobre uma ou outra coisa particular, então as nossas deduções constituem matemática. Portanto, matemática pode ser definida como a disciplina na qual nunca sabemos sobre o que falamos, nem se o que dizemos é verdade.

    — Bertrand Russell

Axiomas de Euclides

  1. Dados dois pontos, existe um segmento reto que os junta.
  2. Dado um segmento (finito) reto, existe uma única maneira de estendê-lo sem limites.
  3. Dado um ponto, existe um único círculo nele centrado com o raio dado.
  4. Todos os ângulos retos são iguais.
  5. Se uma reta intersecta duas outras retas de tal modo que os ângulos internos no mesmo lado são menores de dois ângulos retos, então as duas retas, prolongadas suficientemente, intersectam-se no lado onde a soma dos ângulos é menor de dois ângulos retos.
    Também conhecido como o Postulado das Paralelas ou o Axioma das Paralelas.

Tentativas de eliminação do 5º Axioma

Durante os séculos, vários matemáticos tentavam provar o 5º Axioma usando os primeiros quatro axiomas. Entre eles:

  • Ptolomeu (100–170, aproximadamente)
  • Proclo (410–485)
  • Abu Ali Haçane ibne Haitão (965–1040)
  • Girolamo Saccheri (1667–1733)
  • Johann Lambert (1728–1777)

Porém, todas essas “demonstrações” do Postulado das Paralelas eram falsas.

Geometria sem o 5º Axioma?

Nikolai Lobachevsky (1829) — primeira descrição de uma “geometria” sem o Postulado das Paralelas.

János Bolyai (1831) — desenvolveu, independentemente do Lobachevsky, a mesma ideia.

  • Desde então, geometria sem o 5º Axioma foi chamada geometria não-euclidiana.
  • Gauss, Lobachevsky, Riemann e Poincaré continuaram a trabalhar na geometria não euclidiana e desenvolveram duas versões dela: geometria elíptica (esférica) e geometria hiperbólica
  • Em 1868 Beltrami mostrou que o 5º Axioma é independente dos outros axiomas.

Modelos de teorias axiomáticas

Página 351 de Principia Mathematica
  • Segundo os formalistas, axiomas são apenas sequências de símbolos sem significado.
  • Um modelo de uma teoria axiomática e uma interpretação das noções da teoria em uma estrutura concreta que satisfaz os axiomas.
  • Por exemplo, um modelo de geometria deve atribuir significado aos nomes como: ponto, reta, ângulo, plano, etc.
  • A maioria dos matemáticos trabalha sempre em um modelo ou outro.
  • Um modelo é “bom” se ele concorda com as nossas intuições (aspecto humanista de matemática).

Geometria do plano

Descartes: geometria analítica

  • Um modelo da geometria de Euclides.
  • O plano é interpretado como $\RR^2$.
  • Um ponto é (interpretado como) um par ordenado $(x,y)\in\RR^2$.
  • Linhas retas: conjuntos de soluções de equações da forma $Ax + By + C = 0$.
  • Distância entre dois pontos $P_1=(x_1, y_1)$ e $P_2=(x_2, y_2)$ é dada por \[ |P_1 P_2| = \sqrt{(x_1 - x_2)^2 + (y_1 - y_2)^2}. \]

Produto escalar em $\RR^n$

  • Para dois vetores $\mathbf{v}=(v_1,\dotsc,v_n), \mathbf{w}=(w_1,\dotsc,w_n)\in\RR^n$, definimos o seu produto escalar pela fórmula \[ \langle\mathbf{v}, \mathbf{w}\rangle = v_1w_1 + v_2w_2 + \dotsb + v_nw_n. \]
  • O comprimento de um vetor é dado pela fórmula: \[ \|\mathbf{v}\| = \sqrt{\langle\mathbf{v},\mathbf{v}\rangle} \]
  • O ângulo entre os vetores $\mathbf{v}$ e $\mathbf{w}$ pode ser calculado a partir da fórmula: \[ \cos\measuredangle(\mathbf{v},\mathbf{w}) = \frac{\langle\mathbf{v},\mathbf{w}\rangle}{\|\mathbf{v}\|\cdot\|\mathbf{w}\|} \]
  • Assim, o produto escalar determina ângulos e distâncias.

Comprimento de curvas em $\RR^2$

Seja $\gamma : [0, 1] \to \RR^2$ uma função diferenciável, ou seja \[ \gamma(t) = \bigl(x(t), y(t)\bigr) \] onde $x(t)$ e $y(t)$ são funções diferenciáveis da variável $t$, com derivadas contínuas.

Definição
O comprimento $L(\gamma)$ da curva $\gamma$ é definido pela equação \[ L(\gamma) = \int_0^1 \sqrt{\bigl(x'(t)\bigr)^2 +\bigl(y'(t)\bigr)^2}\,dt = \int_0^1 \|\gamma'(t)\|\,dt \]

Obs: a expressão à direita funciona em qualquer dimensão $n$, definindo o comprimento de curvas $\gamma:[0,1]\to\RR^n$.

Isometrias euclidianas

Isometrias são as transformações que preservam todas as propriedades geométricas.

Do grego ίσος [ísos]: igual + μέτρον [métron]: medida.

Definição – isometrias
Uma transformação bijectiva $F:\RR^n\to\RR^n$ é chamada uma isometria euclidiana se $F$ preserva distâncias entre pontos; i.e., para cada $P,Q\in\RR^n$ temos \[ |F(P)\,F(Q)| = |PQ|. \] Equivalentemente, $F$ é diferenciável, com inversa diferenciável, e sua derivada $DF$ satisfaz \[ \langle DF(\mathbf{v}), DF(\mathbf{w})\rangle = \langle\mathbf{v},\mathbf{w}\rangle \] para quaisquer vetores $\mathbf{v}, \mathbf{w}\in\RR^n$.

Exemplos de isometrias euclidianas

Reflexão
Rotação

Translação

Isometrias: descrição algébrica

Observação
O conjunto de todas isometrias euclidianas $F:\RR^n\to \RR^n$ é um grupo com a operação “$\circ$” de composição de transformações.

Usando álgebra linear, podemos classificar todas as isometrias euclidianas em termos de matrizes ortogonais.

Teorema – Classificação de isometrias euclidianas
Cada isometria euclidiana $F:\RR^n\to\RR^n$ tem a forma \[ F(\mathbf{x}) = A\mathbf{x} + \mathbf{b} \] para uma única matriz ortogonal $A$ e um único vetor $\mathbf{b}$.

Isometrias: classificação

O teorema de classificação pode ser estabelecido em três passos:

  1. Primeiro, analisamos isometrias que preservam a origem: $F(\mathbf{0})=\mathbf{0}$. Mostramos que cada tal isometria tem uma derivada constante, então $F(\mathbf{x})=A\mathbf{x}$ para uma matriz constante $A$.
  2. Depois, mostramos que a transformação linear $F(\mathbf{x})=A\mathbf{x}$ é uma isometria $\Longleftrightarrow$ $A$ é uma matriz ortogonal.
  3. Consideramos o caso geral, sem a hipótese de $F$ preservar a origem. Definindo $\mathbf{b} := F(\mathbf{0})$ e usando os pontos anteriores, mostramos que cada isometria tem a forma $F(\mathbf{x})=A\mathbf{x}+\mathbf{b}$ para todo $\mathbf{x}\in\RR^n$, onde $A$ é uma matriz ortogonal $n\times n$.

Grupo de isometrias euclidianas

Seja $\Isom(\RR^n)$ o grupo de isometrias euclidianas, i.e., transformações $F:\RR^n\to\RR^n$ da forma $F(\mathbf{x})=A\mathbf{x}+\mathbf{b}$, onde $A\in O(n)$, $\mathbf{b}\in\RR^n$.

Teorema
O grupo $\Isom(\RR^n)$ é gerado por reflexões em hiperplanos.

Demonstração:

  • Cada translação é uma composição de duas reflexões.
  • Cada rotação é uma composição de duas reflexões.
  • Cada isometria que preserva orientação é uma composição de uma rotação e uma translação.
  • Cada isometria que não preserva orientação é uma composição de uma isometria que preserva orientação com uma reflexão.

Visualização para $n=2$

Geometria analítica – sumário

  • Distâncias e ângulos em $\RR^n$ são determinados pelo produto escalar.
  • Geometria analítica em $\RR^n$ é um modelo da geometria de Euclides.
    Em particular, $\RR^2$ é um modelo da geometria plana e $\RR^3$ – da geometria do espaço.
  • Propriedades “geométricas” podem ser definidas como todas as propriedades de subconjuntos de $\RR^n$ preservadas pelas isometrias.
  • Programa de Erlangen (F. Klein): geometria é o estudo de propriedades preservadas por uma ação de um grupo.

Ações de grupos

Definição (ação de um grupo)
Se $G$ é um grupo e $X$ é um conjunto, então uma ação de $G$ em $X$ é uma função \[ \begin{aligned} \bullet: G\times X &\to X\\ (g,x) &\mapsto g\bullet x \end{aligned} \] que satisfaz as seguintes propriedades:
  • O elemento neutro $1\in G$ satisfaz $1\bullet x = x$ para todo $x\in X$.
  • Para todo $g,h\in G$ e todo $x\in X$, temos $(gh)\bullet x = g\bullet(h\bullet x)$.

Exemplos:

  • O grupo de isometrias $\Isom(\RR^n)$ age em $\RR^n$: $F\bullet\mathbf{x} = F(\mathbf{x})$.
  • O grupo simétrico $S_n$ age no conjunto de elementos $\{1,2,3,\dotsc,n\}$ por permutações.

Inversões em círculos e esferas

  • Segundo as ideias de Klein, uma geometria diferente da geometria euclidiana terá um grupo diferente de isometrias.
  • Então, ao invês do grupo $\Isom(\RR^n)$ de isometrias euclidianas, devemos considerar outros grupos de transformações.
  • Como $\Isom(\RR^n)$ é gerado por reflexões, vamos considerar uma generalização de reflexões: inversões em círculos e esferas.
  • Informalmente, uma inversão é “uma reflexão, mas em um círculo”.

Inversão em um círculo

Definição (inversão em um círculo)
Seja $C$ um círculo de centro $O$ e raio $r$. A inversão em $C$ é uma transformação $\iota_C$ do plano que leva cada ponto $P\neq O$ ao único ponto $P^\ast=\iota_C(P)$ que pertence ao raio $\overrightarrow{OP}$ e satisfaz $|OP|\cdot|OP^\ast| = r^2$.

Analogia entre inversões e reflexões

  • A inversão $\iota_C$ tem ordem 2: $\iota_C \circ \iota_C = \mathrm{Id}.$
  • $\iota_C$ troca as partes do plano que estão fora e dentro de $C$, fixando cada ponto de $C$.

Visualização de inversões

Obrigado por sua atenção!

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