$ \def\RR{\mathbb{R}} \def\CC{\mathbb{C}} \definecolor{darkred}{HTML}{8f0000} $

Topologia e geometria
de 3-variedades

Aula 5

André Salles de Carvalho e Rafał Marian Siejakowski
33º CBM, IMPA, Rio de Janeiro, 2 a 6 de agosto de 2021

Estruturas nas 3-variedades

O que é “classificar”?

  • Significado estrito: descrever objetos matemáticos a menos de equivalência (por exemplo: homeomorfismo, difeomorfismo, isometria, etc.).
  • Significado mais amplo: classificar é organizar informação sobre objetos diversos em categorias, hierarquias e estruturas (por exemplo: classificação de substâncias químicas).

No segundo caso, não esperamos obter uma lista completa de possibilidades.

No entanto, uma boa classificação ajuda-nos a entender novos exemplos.

O caso bidimensional: classificação de superfícies

A classificação de superfícies constitui um exemplo de classificação no sentido forte da palavra.

Teorema (classificação de superfícies)
Cada superfície compacta e orientável $S$ é homeomorfa a exatamente uma superfície $\Sigma_g$ da lista acima. Se $S$ é suave, ela é também difeomorfa a $\Sigma_g$.

Mas não é possível esperar uma classificação tão simples para 3-variedades.

Outra classificação de superfícies: Superfícies de Riemann

Definição (superfície de Riemann)
Uma superfície de Riemann é uma 2-variedade topológica conexa equipada com um atlas holomorfo (analítico) com valores em $\CC$.

Exemplos de superfícies de Riemann

  • O plano $\CC$ é uma (muito simples) superfície de Riemann não compacta.
  • Seja $\mathbb{Z}+i\mathbb{Z} = \{a+ib : a,b\in\mathbb{Z}\}\subset\CC$.
    O quociente de $\CC$ pela ação de $\mathbb{Z}+i\mathbb{Z}$ é o 2-toro $T^2$ com um atlas holomorfo – uma superfície de Riemann.
    Mais geralmente, cada $\tau\in\CC$, $\mathrm{Im}\,\tau > 0$, define um toro holomorfo $\CC / (\mathbb{Z}+\tau\mathbb{Z})$.
  • A 2-esfera é uma superfície de Riemann. Um atlas holomorfo pode ser obtido usando as projeções estereográficas a partir dos dois “polos” (norte e sul).

Superfícies de Riemann simplesmente conexas

Aqui estão três exemplos de superfícies de Riemann simplesmente conexas:

$S^2,\ \CC,\ H^2$ (semiplano superior).
Observação
Embora as superfícies $\CC$ e $H^2$ sejam difeomorfas, não existe um difeomorfismo holomorfo entre elas. Por isso, elas são diferentes como superfícies de Riemann.

Prova: Considere a função $f(z) = e^{iz} = e^{ix - t}$ no semiplano superior $H^2 = \{z=x+it : t > 0\}$…

Teorema de Uniformização

O Teorema de Uniformização é um dos mais importantes teoremas provados no século XX.

Teorema (Koebe; Poincaré, 1907)
Uma superfície de Riemann simplesmente conexa é analiticamente difeomorfa a $S^2$, $\CC$, ou $H^2$.
Corolário
Toda superfície de Riemann é um quociente de exatamente uma das superfícies $\{S^2, \CC, H^2\}$ pela ação de um grupo de automorfismos holomorfos.

Estruturas complexas vs geométricas

As três superfícies $\{S^2, \CC, H^2\}$ são, também, modelos de geometrias homogêneas e isotrópicas em dimensão 2:

  • Geometria esférica da 2-esfera $S^2$;
  • Geometria euclidiana do plano $\CC$;
  • Geometria hiperbólica do semiplano superior $H^2$.

Essas geometrias são intimamente relacionadas às estruturas conformes nas três superfícies.

Em geral, existem várias maneiras de tornar uma 2-variedade compacta em uma superfície de Riemann: estruturas analíticas em superfícies de Riemann são parametrizadas pelos espaços de Teichmüller.

Classificação geométrica (“geometrização”) de superfícies

Cada superfície de Riemann compacta admite uma geometria esférica ou euclidiana ou hiperbólica.

  • Em partícular, a 2-esfera $S^2$ já tem a geometria esférica.
  • O 2-toro term geometria euclidiana, pois é um quociente de $\RR^2$ pela ação (livre, propriamente descontínua) de um grupo de translações euclidianas.
  • “Abaixo” de cada uma dessas superfícies há um espaço de Teichmüller que parametriza (classifica) as métricas em cada uma delas.

Superfícies de alto gênero

Cada superfície $\Sigma_g$ de gênero $g\geq2$ pode ser equipada com uma métrica hiperbólica.

Em particular, essa métrica sempre é induzida por uma colagem de um polígono hiperbólico. Existem $6g-6$ graus de liberdade na escolha da métrica hiperbólica na superfície $\Sigma_g$.

Agora para dimensão 3

  • Como em dimensão 2, em dimensão 3 usamos uma combinação de métodos topológicos e geométricos.
  • O Teorema de Uniformização classifica as possíveis variedades complexas de dimensão complexa 1 (dimensão real 2).
  • Obviamente, tais estruturas podem existir somente em variedades de dimensão par.
  • Mesmo assim, o ponto de vista geométrico faz sentido em dimensão 3.
  • Quais são as possíveis geometrias em dimensão 3?
Felix Klein (“Programa de Erlangen”): Geometria é o estudo de propriedades preservadas pela ação de um grupo de Lie.

Trabalho de L. Bianchi


Luigi Bianchi (1856–1928)

Ao fim do século XIX, Bianchi classificou álgebras de Lie reais, de dimensão 3.

A classificação de Bianchi descreve 9 possíveis álgebras e 2 famílias infinitas (contínuas) de álgebras.

A cada álgebra de Lie 3-dimensional corresponde um (único) grupo de Lie simplesmente conexo.

Aguns desses grupos de Lie admitem métricas riemannianas invariantes.

As oito geometrias de Thurston


William Thurston (1946–2012)

Em 1982, Thurston descreveu oito geometrias tridimensionais:

  • três geometrias homogêneas e isotrópicas:
    $S^3, \RR^3, H^3$
  • cinco geometrias homogêneas, mas não isotrópicas:
    duas geometrias-produtos: $S^2\times \RR, H^2 \times \RR$;
    três geometrias que não são produtos: $\mathrm{Nil}, \mathrm{Sol}, \widetilde{SL(2,\RR)}$.

Conjectura de Geometrização

Conjectura de Geometrização (Thurston)
Cada 3-variedade compacta pode ser cortada em um número finito de pedaços, ao longo de esferas e toros bidimensionais mergulhados, de tal forma que o interior de cada pedaço admite uma métrica riemanniana localmente modelada por uma das oito geometrias. Essa decomposição é (essencialmente) única.

História da Conjectura

  • Thurston formulou a Conjectura de Geometrização em 1982.
  • Naquela altura, a Conjectura já estava estabelecida para 3-variedades compactas, primas, com bordo.
  • Mais geralmente, Thurston estabeleceu a Conjectura para variedades de Haken (variedades primas que contêm superfícies mergulhadas incompressíveis).
  • Em particular, uma variedade $M$ de Haken, sem bordo é hiperbólica se o somente se nenhuma aplicação $T^2\to M$ induz um monomorfismo nos grupos fundamentais.

Exemplo de geometrização


O nó figura-oito, $4_1$

Um exemplo clássico de geometrização é a variedade \[ M = S^3 \setminus K, \] onde $K\subset S^3$ é o nó figura-oito.

A variedade $M$ é homeomorfa ao interior de uma 3-variedade compacta cujo bordo é um toro.

Existe em $M$ uma única métrica hiperbólica completa de volume finito.

Complemento do nó figura-oito

Hiperbolização do complemento
do nó figura-oito

Para colar os dois tetraedros (sem vértices) geometricamente, realizamo-nos como tetraedros ideais regulares em $H^3$.

Riley, Thurston, ca. 1979

Conjectura de Poincaré


Henri Poincaré (1854–1912)

Um dos passos mais difíceis na prova da Conjectura de Geometrização foi a análise de 3-variedades esféricas – variedades com a geometria local de $S^3$.

Em particular, a conjectura de Thurston contém, como caso especial, a Conjectura de Poincaré:

Conjectura de Poincaré
A única 3-variedade compacta, sem bordo, conexa e simplesmente conexa é a 3-esfera.

Prova da Conjectura de Poincaré


Grigori Perelman (1966–)

A Conjectura de Poincaré foi estabelecida por Grigori Perelman em 2006.

A prova de Perelman confirmou também a Conjectura de Geometrização de Thurston. Hoje em dia, fala-se do Teorema de Geometrização.

Ingredientes da prova


Richard Hamilton (1943–)

Hamilton mostrou que a única 3-variedade simplesmente conexa com métrica riemanniana de curvatura de Ricci positiva é a 3-esfera $S^3$.

Fluxo de Ricci: evolução da métrica riemanniana em tempo, governada pela curvatura de Ricci.

Ideia: deixar o fluxo de Ricci distribuir a curvatura de Ricci de modo que ela fique positiva em toda variedade.

Singularidades do fluxo de Ricci

Infelizmente, singularidades podem ocorrer durante o fluxo de Ricci:

Para eliminar as singularidades, podemos usar cirurgia, recortando a região que vai virar singular, e colando no seu lugar um pedaço regular.

Perelman mostrou que essas intervenções cirúrgicas permitem continuar o fluxo até a curvatura de Ricci ficar positiva.

Consequências de geometrização

O Teorema de Geometrização estabelece relações entre topologia e geometria de 3-variedades.

Como certas geometrias são “rígidas”, as suas propriedades são unicamente determinadas pela topologia.

Exemplo: Teorema de rigidez de Mostow–Prasad
Se $M$ é uma 3-variedade, então existe em $M$ no máximo uma métrica hiperbólica de volume finito que torna $M$ um espaço métrico completo.

Como consequência, uma vez que $M$ tem geometria hiperbólica (completa, de volume finito), então todas as propriedades dessa geometria são invariantes topológicos de $M$.

Geometrização de complementos dos nós

Cada nó na 3-esfera pertence a exatamente uma das três categorias.

Nó satélite Nó toral Nó hiperbólico
“Nó atado em cima de um outro nó.” Nó equivalente à curva \[ t\mapsto\bigl(e^{ipt}, e^{iqt}\bigr)\subset T^2, \] $p$ e $q$ coprimos. Nó cujo complemento admite uma métrica hiperbólica completa de volume finito.