Desde o início da sua história, geometria tem lidado com “formas geométricas” em termos de ângulos e distâncias.
Saber como medir ângulos e distâncias permite definir áreas, volumes, etc.
As noções costumeiras de ângulo e distância em $\RR^n$ são determinadas pelo produto escalar de vetores: \[ \|\mathbf{v}\| = \sqrt{\langle\mathbf{v},\mathbf{v}\rangle},\quad \cos\measuredangle(\mathbf{v},\mathbf{w}) = \frac{\langle\mathbf{v},\mathbf{w}\rangle}{\|\mathbf{v}\|\cdot\|\mathbf{w}\|}. \]
Em particular, se $\gamma:[0,1]\to\RR^n$ é uma curva diferenciável, \[ t\mapsto\bigl(\gamma_1(t), \gamma_2(t),\dotsc,\gamma_n(t)\bigr), \] o comprimento de $\gamma$ pode ser calculado como \[ \text{comprimento}(\gamma) = \int_0^1 \|{\color{darkred}\gamma'(t)}\|\,dt = \int_0^1 \sqrt{\langle\gamma'(t),\gamma'(t)\rangle}\,dt, \] onde ${\color{darkred}\gamma'(t)} = \bigl(\gamma'_1(t), \gamma'_2(t),\dotsc,\gamma'_n(t)\bigr)$ é o vetor tangente a $\gamma$ em $\gamma(t)$.
Suponhamos que queremos equipar uma variedade suave $M$ com “geometria”.
Para cada $p\in M$, denotamos por $T_p M$ o espaço tangente a $M$ no ponto $p$.
Para definir as noções de comprimento e de ângulo entre vetores tangentes a $M$, precisamos de um “produto escalar” no espaço $T_pM$ em cada ponto $p\in M$.
A métrica riemanniana é, essencialmente, uma escolha de produto escalar não degenerado que varia suavemente de ponto a ponto.
Uma variedade riemanniana é uma variedade suave equipada com uma métrica riemanniana.
Dada uma curva diferenciável $\gamma:[0,1]\to M$ na variedade riemanniana $M$, o comprimento de $\gamma$ é definido por: \[ \text{comprimento}(\gamma) = \int_0^1 \sqrt{\langle\gamma'(t),\gamma'(t)\rangle_{\gamma(t)}}\,dt. \]
Consequentemente, podemos definir distância entre pontos em $M$ como o comprimento do caminho mais curto entre eles.
Suponha $M=\{(x,t)\in\RR^2 : t > 0\}$ tem a métrica riemanniana dada por \[ \left\langle\begin{bmatrix} u_1\\ u_2\end{bmatrix}, \begin{bmatrix} v_1\\ v_2\end{bmatrix}\right\rangle^M_{(x,t)} = \frac{u_1 v_1 + u_2 v_2}{t^2}. \] Calcule o comprimento, nessa métrica riemanniana, do segmento vertical entre os pontos $(0,a)$ e $(0,b)$, onde $b > a > 0$.
Analogamente ao caso de $\RR^n$, isometrias de variedades riemannianas são difeomorfismos que preservam a métrica riemanniana.
Em particular, $\psi: M\to M$ é uma isometria de $M$ se, para cada ponto $p\in M$ e quaisquer vetores tangentes $\mathbf{v}, \mathbf{w}\in T_pM$, vale a igualdade \[ \langle D\psi(\mathbf{v}), D\psi(\mathbf{w})\rangle_{\psi(p)} = \langle\mathbf{v},\mathbf{w}\rangle_p. \]
A métrica esférica em $S^3\subset\RR^4$ é definida como a restrição do produto escalar euclidiano em $\RR^4$ aos espaços tangentes à 3-esfera.
O grupo de isometrias da 3-esfera é $O(4)$.
Voltando ao exemplo de $M=\{(x,t)\in\RR^2 : t > 0\}$, considere a inversão no círculo unitário, \[ \iota(x,t) = \frac{1}{x^2 + t^2}(x,t), \quad \iota:M\to M. \] Mostre que $\iota$ é uma isometria, ou seja, que \[ \left\langle D\iota_{(x,t)}(\mathbf{u}), D\iota_{(x,t)}(\mathbf{v})\right\rangle_{\iota(x,t)} = \langle\mathbf{u},\mathbf{v}\rangle_{(x,t)}. \] para quaisquer vetores $\mathbf{u}$, $\mathbf{v}$.
Curvas geodésicas desempenham o papel de “linhas retas” numa variedade riemanniana $M$.
Mais formalmente, curvas geodésicas localmente minimizam a distância entre pontos em $M$. Em outras palavras, dados dois pontos $p,q\in M$ suficientemente pertos um do outro, a distância entre $p$ e $q$ é o comprimento de uma geodésica entre eles.
Para cada ponto $p\in M$ e cada vetor tangente $\mathbf{v}\in T_pM$ existe uma única curva geodésica que passa por $p$ na direção de $\mathbf{v}$.
Por exemplo, as geodésicas em $S^3$ são os círculos máximos.
A métrica esférica (como a métrica euclidiana em $\RR^n$) tem muita simetria: “todos os pontos são os mesmos” e “todas as direções são as mesmas”.
Uma variedade riemanniana $M$ é chamada homogênea se, para quaisquer pontos $p,q\in M$ existem vizinhanças $U_p$, $U_q$ e uma isometria $\psi:U_p\to U_q$ que faz $\psi(p)=q$.
Se, além disso, para cada par de vetores tangentes $\mathbf{v},\mathbf{w}\in T_pM$ com $\|\mathbf{v}\|=\|\mathbf{w}\|=1$ existe uma isometria $\psi$ que fixa $p$ e satisfaz $D\psi(\mathbf{v})=\mathbf{w}$, dizemos que $M$ é uma variedade isotrópica.
A menos de normalização, existem três geometrias homogenêas e isotrópicas em dimensão 3.
Geometria: | esférica | euclidiana | hiperbólica |
---|---|---|---|
espaço-modelo: | $S^3$ | $\RR^3$ | $H^3$ |
curvaturas seccionais: | $\equiv +1$ | $\equiv 0$ | $\equiv -1$ |
triângulos: | |||
soma de ângulos em um triângulo: | $\alpha+\beta+\gamma > \pi$ | $\alpha+\beta+\gamma = \pi$ | $\alpha+\beta+\gamma < \pi$ |
área de um triângulo: | $(\alpha+\beta+\gamma)-\pi$ | não determinada pelos ângulos | $\pi-(\alpha+\beta+\gamma)$ |
Uma variedade geométrica é uma variedade riemanniana cuja geometria é localmente modelada por uma das geometrias “bonitas”. Em dimensão 3, falamos de variedades esféricas, euclidianas e hiperbólicas.
Seja $X\in\{S^3, \RR^3, H^3\}$ um espaço-modelo. Uma variedade geométrica modelada por $X$ é uma 3-variedade riemanniana $M$ na qual cada ponto $p$ tem uma vizinhança $U$ equipada com uma isometria $\varphi:U\to\varphi(U)\subset X$. Para duas cartas coordenadas $\varphi:U\to X$, $\psi:V\to X$ satisfazendo $U\cap V\neq0$, a troca de coordenadas $\psi\circ\varphi^{-1}$ tem de ser uma restrição de uma isometria de $X$.
Uma maneira concreta de construir variedades geométricas é por colagem de poliedros geométricos.
Um poliedro geométrico em uma região compacta em $X$ limitada por um número finito de “planos” (superfícies totalmente geodésicas); $X\in\{S^3,\RR^3,H^3\}$.
Supomos que pares de faces dos poliedros geométricos são colados por isometrias que preservam orientação.
A soma de ângulos diedrais nas arestas coladas deve ser sempre igual a $2\pi$.
O 3-toro $T^3$ pode ser equipado com geometria euclidiana induzida pela colagem de um cubo unitário em $\RR^3$.
Essa geometria não é única: colagens de outros paralelepípedos definem variedades difeomorfas mas não necessariamente isométricas.
O espaço dodecaédrico de Poincaré é a 3-variedade compacta $M$ obtida por colagem das faces opostas de um dodecaedro por meio de “movimentos de parafuso” de ângulo $\frac{\pi}{5}$.
Alternativamente, $M = S^3/G$ onde $G$ é o grupo binário icosaedrico, com 120 elementos.
A colagem junta as arestas do dodecaedro em grupos de três.
O ângulo diedral em um dodecaedro regular euclidiano é igual a \[ \alpha\approx 116,565^\circ < 120^\circ = \frac{2\pi}{3}. \]
Porém, existe um dodecaedro regular esférico (um subconjunto de $S^3$ limitado por 12 pentágonos (esféricos) de 2-esferas máximas) com ângulo diedral $\alpha = 120^\circ$. A colagem desse dodecaedro define a geometria esférica no espaço dodecaédrico de Poincaré.
Ao contrário da 3-esfera (e das esferas em geral), o 3-espaço hiperbólico $H^3$ não pode ser realizado como uma subvariedade riemanniana de qualquer $\RR^n.$
Portanto, usam-se vários “modelos” de geometria hiperbólica:
Para construir o plano hiperbólico $H^2$, vamos usar o modelo do semiplano superior.
Como consequência da definição, as geodésicas no semiplano superior são semirretas verticais $x=\mathrm{const}$ e semicírculos centrados na linha horizontal $t=0$.
Analogamente, o 3-espaço hiperbólico $H^3$ pode ser construído como o semiespaço superior, \[ H^3 = \{(x,y,t)\in\RR^3 : t > 0\},\quad \langle\mathbf{v}, \mathbf{w}\rangle^{H^3}_{(x,y,t)} = \frac{\langle\mathbf{v}, \mathbf{w}\rangle^{\RR^3}}{t^2}. \]
Em particular, cada semiplano vertical da forma \[ \{(x,y,t)\in\RR^3 : t > 0\ \text{e}\ Ax+By=C\} \] é isométrico ao plano hiperbólico $H^2$.
Língua euclidiana | Língua hiperbólica (dialeto do semiespaço superior) |
---|---|
espaço $\RR^3$ | $H^3$ (semiespaço superior) |
produto escalar | métrica hiperbólica $\langle\,\cdot\,,\,\cdot\,\rangle^{H^3}$ |
ponto | ponto |
reta | semicírculo perpendicular ao plano $t=0$ e nele centrado ou um raio vertical $(x,y)=\mathrm{const}$. |
plano | hemiesfério centrado no plano $t=0$ ou um semiplano vertical $Ax+By=C$. |
Um poliedro hiperbólico é uma região de $H^3$ limitada por um número finito de pedaços de planos hiperbólicos.
As faces de um dodecaedro podem ser coladas por “movimentos de parafuso” de ângulo $\frac{3}{5}\pi.$ Isso identifica as arestas em grupos de cinco.
Para geometrizar essa colagem, precisamos de um dodecaedro de ângulo diedral $\alpha=\frac{2}{5}\pi=72^\circ.$ A variedade hiperbólica resultante é chamada o espaço dodecaédrico de Seifert-Weber.