André Salles de Carvalho e Rafał Marian Siejakowski
33º CBM, IMPA, Rio de Janeiro, 2 a 6 de agosto de 2021
Variedades suaves – ideia geral
Uma variedade suave (ou variedade diferenciável) é
um espaço topológico $M$ no qual faz sentido falar de derivação de funções $f:M\to\RR$.
Cada região suficientemente pequena em uma $n$-variedade suave $M$ é parametrizada
bijetivamente por $n$ parâmetros reais.
Esses parâmetros reais sempre pertencem a um subconjunto aberto de $\RR^n$:
uma $n$-variedade é “$n$-dimensional”.
Variedades suaves – definição
Definição
O espaço topológico $M$ é uma n-variedade suave se cada ponto
$p\in M$ tem uma vizinhança aberta $U\ni p$ equipada com
uma carta coordenada $\varphi:U\to\RR^n$ que é um homeomorfismo sobre sua imagem.
Além disso, supomos que as cartas coordenadas formam um atlas diferenciável.
As cartas coordenadas formam um atlas diferenciável
se, para quaisquer cartas
\[
\varphi:U\to\RR^n\quad\text{e}\quad\psi:V\to \RR^n
\]
tais que $U\cap V\neq\varnothing$, a composição
$\psi\circ\varphi^{-1}$ é diferenciável e tem uma inversa diferenciável.
Atlas diferenciável
Derivação em variedades
Se $M$ é uma variedade suave e se $f : M\to\RR$,
dizemos que $f$ é diferenciável se $f\circ\varphi^{-1}$
é diferenciável para cada carta coordenada $\varphi$.
De modo análogo, podemos definir transformações diferenciáveis
entre duas variedades.
Variedades suaves constituem um exemplo de $(X,\mathcal{G})$-variedades,
discutidas em detalhe no livro-texto do curso.
Exemplos de variedades suaves
O espaço $\RR^n$ é trivialmente uma $n$-variedade para cada $n\in\mathbb{N}$.
As superfícies orientáveis:
A n-esfera $S^n$ é uma $n$-variedade suave para cada $n$:
\[
S^n = \{\bfx\in\RR^{n+1} : \|\bfx\|=1\}.
\]
Se $M_1$ e $M_2$ são variedades suaves, então o produto cartesiano $M_1\times M_2$ também é uma variedade suave.
Isso inclui o 2-toro $T^2 = S^1 \times S^1$ e o 3-toro $T^3 = S^1\times S^1\times S^1$.
Alguns não-exemplos
O seguinte subconjunto do plano:
O bordo do cubo unitário $[0,1]^3\subset\RR^3$ consiste de 6 quadrados.
Cada desses quadrados pode ser identificado com um quadrado unitário em $\RR^2$.
suavização
(mas veja também a discussão no livro texto)
Para $n\geq 4$, existem $n$-variedades topológicas que não admitem nenhuma estrutura suave.
Construções de variedades topológicas
“Antes” de ser uma variedade suave, $M$ precisa ser uma variedade topológica.
A maneira mais direta de construir tais variedades é
por colagens de pedaços mais simples.
A ideia geral de colagens inclui as construções clássicas de 3-variedades como:
partições de Heegaard
triangulações (complexos simpliciais e quasi-simpliciais)
colagens de poliedros
← discutidas a seguir
somas conexas
cirurgia de Dehn
…
Ideia geral de colagens
Começamos com pedaços “simples”;
Colamos os pedaços por identificações nos seus bordos –
o resultado da colagem é um espaço topológico quociente;
Certificamo-nos de que o resultado da colagem é uma variedade topológica;
Para que a variedade final tenha uma estrutura adicional,
os pedaços devem ter essa estrutura e as colagens devem preservá-la.
Por exemplo, colagens feitas por meio de difeomorfismos
induzem a estrutura de uma variedade suave.
Colagens de polígonos
Exercício 3.1.2 do livro-texto do curso:
Qual espaço resulta da colagem dos lados do hexágono
conforme as instruções mostradas à direita?
Colagens de poliedros
Uma colagem de um poliedro compacto $\mathcal{P}$ é um agrupamento
das faces de $\mathcal{P}$ em pares, juntamente com a escolha dum homeomorfismo
que identifica as duas faces que formam cada par.
O resultado da colagem é o quociente de $\mathcal{P}$
por essas identificações em $\partial\mathcal{P}$.
Por exemplo, podemos colar faces opostas de um cubo por translações.
O resultado desta colagem é uma 3-variedade, chamada o 3-toro e denotada $T^3$.
Já vimos (na primeira aula) um vídeo mostrando como é voar dentro do 3-toro.
Nem toda colagem produz uma 3-variedade
Às vezes, colagens de poliedros não definem 3-variedades.
⏯
Exemplo: o espaço quociente obtido do octaedro mostrado por colagem de faces da mesma
cor (por rotações).
No livro-texto do curso, discutimos critérios que permitem decidir se uma
colagem de um poliedro define uma 3-variedade ou não.
Vizinhanças de vértices
Em uma 3-variedade, cada ponto tem uma vizinhança homeomorfa a uma bola em $\RR^3$.
Mas aqui, o ponto que vem do vértice superior do octaedro não tem essa propriedade.
O mesmo problema acontece no vértice inferior.
Quocientes por ações de grupos
Grupos agindo em espaços
Uma forma de fazer com que tudo o que discutimos “aconteça ao mesmo tempo”
(identificações de faces de poliedros, variedade topológica,
diferenciabilidade, e mais)
é tomarmos quocientes de bons espaços por
ações de grupos discretos.
A definição formal e uma discussão aprofundada estão nas seções 2.4.2 e 3.3.4 da notas.
Nossos velhos amigos – os toros
O toro bidimensional $T^2$ pode ser obtido do plano $\RR^2$ como quociente pela ação do
subgrupo $\mathbb{Z}^2$.
Analogamente, o 3-toro é o quociente $T^3 = \RR^3/\mathbb{Z}^3$.
Ambos os toros herdam a geometria euclidiana do plano $\RR^2$ e do espaço $\RR^3$, dos quais
são quocientes.
Domínio fundamental para ação de grupo
Ações topológicas correspondem a colagens topológicas e
ações geométricas – a colagens geométricas.
Quociente por ação (
livre, cocompacta, propriamente descontínua) de $G\ \longleftrightarrow\ $
Colagem de um poliedro $\mathcal{P}$
$\mathcal{P}$ pode ser construído como um domínio fundamental da $G$-ação;
$G$ é gerado pelas transformações que colam as faces de $\mathcal{P}$.
Exemplo:
O cubo unitário é um domínio fundamental para a ação de $\mathbb{Z}^3$ em $\RR^3$
que define o 3-toro.
Grupos e a 3-esfera
Quatérnios – ideia geral
Os números complexos são pares de números reais:
\[
a, b\in\RR\ \leadsto z = a+b\qi\in\CC,
\]
onde $\qi\not\in\RR$ satisfaz $\qi^2 = -1$ (extensão quadrática do corpo $\RR$).
O corpo $\CC$ é algebricamente fechado, mas pode ser “extendido” a um
anel não comutativo $\HH$ de modo análogo:
\[
a+b\qi,\; c+d\qi \in\CC \leadsto\mathbf{q} = (a+b\qi) + (c+d\qi)\qj\in\HH,
\]
onde $\qj\not\in\CC$ e $\qj^2 = -1$. Definindo $\qk:=\qi\qj$, temos
\[
\mathbf{q} = (a+b\qi) + (c+d\qi)\qj
= a + b\qi + c\qj + d\qk,\quad a,b,c,d\in\RR.
\]
A álgebra de quatérnios
Definição (🇧🇷quatérnios / 🇵🇹quaterniões)
Um quatérnio é uma expressão da forma
\[
\mathbf{q} = a + b\qi + c\qj + d\qk, \quad a,b,c,d\in\RR.
\]
O conjunto de quatérnios é denotado $\HH$.
Adição de quatérnios: por componentes (como vetores em $\RR^4$).
Quatérnios formam uma álgebra real com a multiplicação
determinada por $\qi^2=\qj^2=\qk^2=\qi\qj\qk=-1$.
A multiplicação de quatérnios é associativa, mas não comutativa.
Com as operações de adição e de multiplicação de quatérnios,
$\HH$ forma um anel não comutativo.
Ao mesmo tempo, $\HH$ é um espaço vetorial real:
\[
\HH\ni a+b\qi+c\qj+d\qk \longleftrightarrow (a,b,c,d)\in\RR^4.
\]
Por isso, $\HH$ é uma álgebra real não comutativa de dimensão 4.
A álgebra de quatérnios é isomorfa a uma álgebra 4-dimensional de matrizes complexas $2\times 2$:
\[
a+b\qi+c\qj+d\qk \longleftrightarrow
\begin{bmatrix}
a+bi & -c-di\\
c-di & a-bi
\end{bmatrix}.
\]
Norma de quatérnios
A norma de um quatérnio é a mesma que a norma de um vetor em $\RR^4$:
\[
\|a + b\qi + c\qj +d\qk\| = \sqrt{a^2 + b^2 + c^2 + d^2}.
\]
A norma de quatérnios é multiplicativa:
$\|\mathbf{q_1 q_2}\| = \|\mathbf{q_1}\|\cdot\|\mathbf{q_2}\|.$
Cada quatérnio não zero tem um inverso dado pela equação:
\[
(a + b\qi + c\qj +d\qk)^{-1} = \|a + b\qi + c\qj +d\qk\|^{-2} (a - b\qi - c\qj - d\qk).
\]
A 3-esfera $S^3 = \{\mathbf{q}\in\HH : \|\mathbf{q}\|=1\}$ é um grupo multiplicativo.
Quatérnios unitários
O grupo de quatérnios unitários:
$S^3 = \{\mathbf{q}\in\HH : \|\mathbf{q}\|=1\}$.
A identificação acima é um isomorfismo de grupos $S^3 \cong SU(2)$.
3-esfera como grupo de Lie
A identificação de $S^3\subset\RR^4\cong\HH$ com quatérnios unitários
mostra que a 3-esfera é simultaneamente uma variedade suave e um grupo.
Essas duas estruturas dão-se bem uma com outra, ou seja, $S^3$ é um grupo de Lie.
Em particular, a esfera $S^3$ age em si mesma por isometrias esféricas
que preservam orientação (elementos de $SO(4)$) de duas maneiras diferentes:
à direita e à esquerda.
Quocientes de $S^3$ por subgrupos finitos
Analogamente, se $G$ é um subgrupo finito de $S^3$,
então o espaço quociente $M = S^3/G$
é uma 3-variedade.
$M$ é o espaço de órbitas da ação de $G$ sobre a 3-esfera.
Como a ação de $G$ na 3-esfera é por isometrias, $M$ herda a geometria local da 3-esfera.
Geometria esférica é discutida em detalhe no Capítulo 4 das notas do curso.
Exemplos de quocientes
Um exemplo simples é o grupo multiplicativo $G=\{1,-1\} < S^3$.
A variedade $S^3/G$ é o resultado da identificação de cada ponto $\bfx\in S^3\subset\RR^4$
ao ponto antípoda $-\bfx$, ou seja, o espaço projetivo tridimensional $\RP^3$.
Seja $G = \{1,\qi,-1,-\qi\} < S^3$. A variedade $S^3/G$ é chamada o espaço lenticular L(4,1).