André Salles de Carvalho e Rafał Marian Siejakowski
33º CBM, IMPA, Rio de Janeiro, 2 a 6 de agosto de 2021
A 3-esfera e como pensá-la
A 3-variedade compacta mais simples é a 3-esfera,
\[
S^3 = \{(x_1, x_2, x_3, x_4)\in\RR^4 : x_1^2 + x_2^2 + x_3^2 + x_4^2 = 1\}.
\]
Como não sabemos imaginar $\RR^4$, não podemos ver $S^3$ “de fora”.
Entretanto, sabemos imaginar o espaço tridimensional ao nosso redor.
Utilizando essa intuição, vamos agora introduzir quatro maneiras de pensar a
3-esfera $S^3$.
Um 1-disco é simplesmente um segmento fechado: $D^1=\{x\in\RR^1 : |x|\leq 1\}$.
Assim, um círculo pode ser feito de dois segmentos colados ao longo de seus bordos (seus pontos extremos).
Esfera bidimensional
Analogamente, a 2-esfera $S^2$ é a união de dois discos topológicos
(os hemisférios) colados ao longo do bordo (que se torna o equador).
Esfera tridimensional
Em $n$ dimensões, $D_+$ e $D_-$ são duas cópias de uma “bola” sólida $n$-dimensional, cujos bordos são
duas cópias da $(n-1)$-esfera. Podemos colar cada ponto $x_+\in\partial D_+$ a seu “gêmeo”, $x_-\in\partial D_-$.
Como nos exemplos anteriores, os interiores das bolas não são colados, apenas seus bordos.
O resultado é uma $n$-esfera topológica $S^n$.
Em particular, para $n=3$, essa descrição
constrói a 3-esfera como a colagem de duas bolas 3-dimensionais ao longo de seus bordos, duas 2-esferas que,
identificadas, tornam-se o “equador” de $S^3$.
Uma 3-esfera aquática
Um peixe em $S^3$ pode nadar livremente em todas as direções.
Natação em $S^3$
Ao atingir o bordo de $D_+$, o peixe passa para $D_-$ sem perceber qualquer “fronteira”
entre as duas bolas (e, em particular, sem morrer ao ser cortado ao meio como indicado na figura).
II $S^3$ como compactificação por um ponto de $\RR^3$
Projeção estereográfica
A projeção estereográfica é uma transformação bijetiva entre
a esfera com um ponto removido e o espaço euclidiano de mesma dimensão:
\[
\projest : S^n\setminus\{A\} \xrightarrow{\cong} \RR^n.
\]
Para definir $\projest$, vamos escolher $A=(0,\dotsc,0,1)\in S^n$ (o “polo norte”).
$\RR^n$ será identificado com o plano
\[\Pi = \{(x_1,\dotsc,x_n, -1) : x_j\in\RR\}\subset\RR^{n+1}.\]
Definição
Para cada ponto $P\in S^n\setminus\{A\}$, define-se $\projest(P)=P'$,
onde $P'\in\Pi$ é o único ponto de interseção do plano $\Pi$ com o raio
saindo de $A$ e passando por $P$.
A projeção estereográfica leva os círculos verticais paralelos dentro de $S^2$
a uma familia de círculos no plano.
Círculos de Apolônio
Os círculos nessa família infinita chamam-se círculos de Apolônio.
As imagens de 2-esferas “verticais” em $S^3$
$\projest$ leva 2-esferas paralelas dentro de $S^3$
a uma familia de esferas “de Apolônio” em $\RR^3$.
Compactificação por um ponto
A projeção estereográfica identifica $S^3$ com a extensão do espaço euclidiano $\RR^3$
por um “ponto no infinito”:
\[
S^3 = \RR^3 \cup \{\infty\}.
\]
O ponto no infinito $\infty$ corresponde ao ponto $A$, a “origem” da projeção estereográfica.
Assim, $S^3$ é o menor espaço topológico compacto que contém $\RR^3$ como um subespaço.
Em outras palavras, $S^3$ é a compactificação por um ponto de $\RR^3$.
$S^n \cong \RR^n \cup \{\infty\}$
II$\tfrac12$ Interlúdio: inversões e projeção estereográfica
Inversão em um círculo
A inversão em um círculo generaliza a reflexão em uma reta.
Definição
Seja $C$ um círculo de centro $O$ e raio $r$.
A inversão em $C$ é uma transformação $\iota_C$ do plano que leva cada ponto
$P\neq O$ ao único ponto $P^\ast=\iota_C(P)$ que pertence ao raio $\overrightarrow{OP}$
e satisfaz $|OP|\cdot|OP^\ast| = r^2$.
Propriedades básicas de inversões
A inversão $\iota_C$ tem ordem 2: $\iota_C \circ \iota_C = \mathrm{Id}.$
$\iota_C$ fixa cada ponto do círculo $C.$
$\iota_C$ troca as partes do plano que estão fora e dentro de $C.$
Visualização de inversão
Conformalidade
A inversão em um círculo leva {círculos e retas} a {círculos e retas}.
Inversões são transformações conformes: elas preservam ângulos entre curvas.
Se $C$ é o círculo de raio 1 centrado na origem $0\in\CC$, então
\[
\iota_C(z) = \frac{1}{\overline{z}}.
\]
Mais geralmente, podemos definir inversões em $n$-esferas dentro de $\RR^{n+1}$.
Essas inversões também são transformações conformes e levam
{hiperplanos e esferas} a {hiperplanos e esferas}.
Projeção estereográfica é uma inversão
Consequentemente, a projeção estereográfica (em qualquer dimensão)
é uma transformação conforme.
III União de toros sólidos
Ponto de vista complexo
Vamos rever a definição da 3-esfera,
\[
S^3 = \{(x_1, x_2, x_3, x_4)\in\RR^4 : x_1^2 + x_2^2 + x_3^2 + x_4^2 = 1\},
\]
usando a identificação $\RR^4\cong\CC^2$.
Se $(z_1, z_2)\in S^3$ e $|z_1|^2 = r^2$, então $|z_2|^2 = 1-r^2$.
Definimos então, para cada $r\in[0,1]$, o conjunto
\[
H_r = \{(z_1, z_2)\in S^3 : |z_1|^2 = r^2,\ |z_2|^2 = 1-r^2\}.
\]
Note que:
Quando $r=0$, $H_0 = \{(0, z_2) : |z_2| = 1\}$ é um círculo.
Analogamente, $H_1 = \{(z_1, 0) : |z_1| = 1\}$ é também um círculo.
Os toros de Hopf
Quando $r\in(0,1)$, o conjunto
\[
H_r = \{(z_1, z_2)\in S^3 : |z_1|^2 = r^2,\ |z_2|^2 = 1-r^2\}
\]
é o toro $\{|z_1|=r\}\times\{|z_2|=\sqrt{1-r^2}\}\subset\CC\times\CC$.
Para $0 \lt r \lt 1$, os toros $H_r$ “interpolam” os dois círculos $H_0$ e $H_1$.
Eles são chamados toros de Hopf.
$S^3$ é uma união disjunta dos toros de Hopf e dos dois círculos extremos $H_0$ e $H_1$:
\[
S^3 = \bigsqcup_{0\leq r \leq 1} H_r.
\]
Projeção estereográfica dos toros de Hopf
3-esfera como união de dois toros sólidos
A 3-esfera é a união de dois toros sólidos $T_0$ e $T_1$:
\[
T_0 = \bigsqcup_{0\leq r \leq \frac{1}{2}} H_r,
\quad
T_1 = \bigsqcup_{\frac{1}{2} \leq r \leq 1} H_r.
\]
“Engordando” os toros sólidos mostrados na figura,
acabamos por preencher toda a $S^3$:
o toro sólido vermelho
torna-se $T_0$, e o azul torna-se $T_1$.
Os dois toros sólidos engordados tocam-se apenas ao longo do seu bordo
comum, o toro (bidimensional) de Hopf $H_{1/2}$.
Para todo $t\in\RR$, $|e^{it}|=1$. Assim, para todo $(z_1, z_2)\in S^3$,
\[
e^{it} \cdot (z_1, z_2) = (e^{it}z_1, e^{it}z_2)\in S^3.
\]
Além disso, $e^{it_1}\cdot(z_1,z_2) = e^{it_2}\cdot(z_1,z_2)\ \Longleftrightarrow\ t_1-t_2 \in 2\pi\mathbb{Z}$.
Definição
O fluxo de Hopf é a ação
\[
\RR\times S^3 \to S^3, \quad
\bigl(t, (z_1, z_2)\bigr) \mapsto e^{it}\cdot(z_1,z_2).
\]
Os círculos de Hopf são as órbitas do fluxo de Hopf, i.e., círculos da forma
$\{ (e^{it} z_1, e^{it} z_2) : t\in\RR\}$.
Propriedades do fluxo de Hopf
O fluxo de Hopf preserva os toros de Hopf: para cada $r\in[0,1]$
e cada $t\in\RR$, $(z_1,z_2)\in H_r\ \Longleftrightarrow\ e^{it}\cdot (z_1,z_2)\in H_r$, já que
$|e^{it}z|=|z|$.
O fluxo de Hopf decompõe toda a 3-esfera $S^3$ em uma união de círculos disjuntos – os círculos de Hopf.
Essa decomposição chama-se a fibração de Hopf.
Todos os círculos de Hopf são círculos geométricos de raio $1$ em $S^3$, centrados na origem de $\CC^2$.
Demonstração:
Cada círculo de Hopf é composto por pontos da forma $(e^{it}z_1,e^{it}z_2)$, onde $(z_1,z_2)\in S^3$,
isto é, $|z_1|^2+|z_2|^2=1$. Mas então $|e^{it}z_1|^2+|e^{it}z_2|^2=|z_1|^2+|z_2|^2=1$.
Projeção estereográfica da fibração de Hopf
Sumário
Nesta aula, mostramos quatro maneiras de imaginar a 3-esfera $S^3$:
União de duas bolas sólidas: $S^3 = D_+ \cup D_-$.
Compactificação por um ponto de $\RR^3$.
A partição de Heegaard – a união de dois toros sólidos.
A fibração de Hopf: $S^3$ é uma união de círculos disjuntos.