$ \def\RR{\mathbb{R}} \def\CC{\mathbb{C}} \def\bfx{\mathbf{x}} $

Topologia e geometria de 3-variedades

Aula 1

André Salles de Carvalho e Rafał Marian Siejakowski
33º CBM, IMPA, Rio de Janeiro, 2 a 6 de agosto de 2021

Variedades

  • Variedades são espaços topológicos que localmente são “como” o $\RR^n$.
  • O que queremos dizer com “como” depende de quais entre as muitas “qualidades” de $\RR^n$ queremos que nossa variedade tenha.
  • Uma $n$-variedade topológica é um espaço topológico* $M$ no qual cada ponto $p\in M$ tem uma vizinhança $U\ni p$ homeomorfa a um conjunto aberto em $\RR^n$.
    * vamos considerar apenas espaços de Hausdorff, com bases enumeráveis.

Origens da ideia de variedade

Variedades aparecem naturalmente em muitas áreas de matemática, ciências e engenharia:

Conjuntos de soluções de equações polinomiais em várias variáveis: \[ x^2 + y^2 = 1 \]

Curvas elípticas: \[ y^2 = x^3 + ax + b \]

Variedades em mecânica

  • Exemplo: o espaço de configurações de um pêndulo é o conjunto de possíveis posições de uma massa $m$ conectada a um ponto fixo por uma haste rígida, movendo-se no plano vertical.
  • O que acontece no caso de um pêndulo duplo?

Desenvolvimento da noção de variedade

Leonhard Euler (1707–1783) observou que, em cada poliedro compacto e convexo, vale a igualdade \[ V - A + F = 2, \] onde $V$ é o número de vértices, $A$ o número de arestas e $F$ o número de faces do poliedro.

Carl F. Gauss (1777–1855) provou, em 1828, o seu Theorema Egregium mostrando que a curvatura de uma superfície depende apenas de sua geometria intrínseca.

Ambas as descobertas são exemplos de propriedades que não haviam sido completamente entendidas à época e que só viriam a sê-lo mais de 100 anos mais tarde.

Geometrias não euclidianas

Lobachevsky (1792–1856) e Bolyai (1802–1860), independentemente, e mais ou menos ao mesmo tempo que Gauss, descobriram a geometria hiperbólica – uma geometria tão bela quanto todas as outras (ou talvez ainda mais), mas que não satisfaz o Axioma de Paralelas de Euclides.

Variedades em geral

Muitos outros matemáticos estudaram objetos que seriam, mais tarde, incluídos na definição de variedade:

  • Abel e Jacobi lidaram com “Variedades Jacobianas”.
  • Hamilton, Lagrange estudaram mecânica em sistemas restritos (com vínculos).

Bernhard Riemann (1826–1866) foi provavelmente o primeiro matemático a considerar as quantidades multiplamente extensas – generalizações $n$-dimensionais de superfícies.

Ele usou a palavra alemã Mannigfaltigkeit (variedade) para descrever o conjunto de valores de uma variável sujeita a restrições.

Nascimento da topologia

Henri Poincaré (1854–1912) introduziu, no artigo “Analysis Situs” (1895), a noção de espaços não homeomorfos e discutiu a ideia de colar vários gráficos de funções para criar “cadeias de variedades” (chaînes des variétés).

Hoje em dia, esse conceito é conhecido pelo nome atlas de cartas coordenadas.

Definição rigorosa de variedades

Hermann Weyl (1885–1955) deu uma definição intrínseca de variedades diferenciáveis no seu curso sobre superfícies de Riemann (anos 1911–1912).

Hassler Whitney (1907–1989) formulou a definição completa de variedades. Essa é a definição moderna.

Dennis Sullivan disse certa vez: “Hassler Whitney tem a elegância de Milnor, a precisão de Mather e a intuição geométrica de Thurston.”

Variedades abstractas

A menos de homeomorfismo, existem poucas variedades em dimensão $n=1$:

Na verdade, as únicas 1-variedades conexas são: $S^1$ (compacta) e $\RR$ (não compacta).

Superfícies – 2-variedades

Existe um número infinito de 2-variedades compactas, conexas e orientáveis:

A característica de Euler $\chi$ é um invariante topológico que pode ser usado para classificar tais superfícies: duas superfícies (cco) $S$ e $S'$ são homeomorfas $\Leftrightarrow\ \chi(S)=\chi(S')$.

Questão
Como entender as 3-variedades? É possível classificá-las? Fazer uma lista?

A forma do Universo

Nem os físicos nem os cosmólogos sabem qual é a topologia do nosso Universo.

Apesar disso, nós matemáticos podemos fazer a seguinte pergunta:

Qual são as possíveis formas de um universo tridimensional?

Ou, em linguagem um pouco mais matemática:
É possível “descrever” todas as 3-variedades conexas sem bordo (a menos de homeomorfismos)?

Exemplos de 3-variedades

  • A 3-esfera é a 3-variedade (compacta) mais simples possível: \[ S^3 = \{(x_1, x_2, x_3, x_4)\in\RR^4 : x_1^2 + x_2^2 + x_3^2 + x_4^2 = 1\} \]
  • Outro exemplo simples é o 3-toro: \[ \begin{aligned} T^3 &= S^1 \times S^1 \times S^1 \\ &= \{(z_1, z_2, z_3)\in\CC^3 : |z_1|=|z_2|=|z_3|=1\} \end{aligned} \]

Créditos

Esses filminhos foram gravados usando o programa “Curved Spaces” criado por Jeff Weeks e disponível, grátis, em www.geometrygames.org.

Recomendamos também o excelente livro “The Shape of Space”, do mesmo autor.

Classificação topológica?

  • Para mostrar que dois espaços topológicos $X$ e $X'$ são homeomorfos precisamos construir um homeomorfismo $f:X\to X'$ entre eles.
  • Provar que $X$ e $X'$ não são homeomorfos é, com frequência, mais fácil: basta encontrar um invariante topológico $\mathcal{F}$ tal que $\mathcal{F}(X)\neq\mathcal{F}(X')$.
  • Por exemplo, para distinguir superfícies compactas e orientáveis usamos a característica de Euler $\chi$.

Complexos celulares (CW-complexos)

Um complexo celular $n$-dimensional ou $n$-complexo pode ser definido por indução em $n$:

Definição (complexo celular)
  • Um complexo celular $0$-dimensional é um espaço discreto.
  • Um complexo $n$-dimensional ($n>0$) é o resultado de colagem de uma coleção de $n$-células a um complexo $(n-1)$-dimensional.
  • Uma $n$-célula é uma bola aberta em $\RR^n$, $C_n = \{\bfx\in\RR^n : \|\bfx\|<1\}$.
  • A colagem de uma $n$-célula a um $(n-1)$-complexo $X$ é feita por meio de uma transformação contínua $f: \partial C_n \to X$ cuja imagem intersecta um número finito de células de $X$.
Veja a definição precisa de colagem no Capítulo 3 das notas.

Construção de complexos celulares

Uma 1-célula é um segmento aberto;
uma 2-célula é um disco 2-dimensional aberto; etc.

Um 0-complexo é uma união disjunta de pontos.

Adicionamos segmentos, colando seus extremos aos pontos do 0-complexo. O resultado é um 1-complexo (também conhecido como um grafo).

Para obter um 2-complexo, adicionamos 2-células (discos), colando seus bordos (que são círculos) a um 1-complexo.

E assim por diante…

Característica de Euler

Se $X$ é um complexo celular com um número finito de células, definimos:

$\chi(X) = \#$(células de dimensão par)${} - \#$(células de dimensão ímpar).

A característica de Euler da 3-esfera é zero

A 2-esfera é feita colando-se uma 2-célula a um ponto e, como vimos, $\chi(S^2)=1+1=2$.

A 3-esfera é obtida de forma análoga, colando uma 3-célula a um ponto. Sua caracaterística de Euler é $\chi(S^3)=1-1=0$.

Característica de Euler de 3-variedades

Teorema
Se $M$ é uma variedade compacta, sem bordo, de dimensão $n$ ímpar, então $\chi(M)=0$.

Demonstração:
Fixemos uma decomposição celular finita $X$ de $M$.
Para cada célula $k$-dimensional em $X$ existe uma célula dual de dimensão $n-k$.
Essas células duais formam a decomposição celular dual $X'$.
Se $k$ é par então $n-k$ é ímpar e vice versa.

Dualidade de Poincaré

Topologia de 3-variedades

  • Como consequência da Dualidade de Poincaré, a topologia de variedades é bastante diferente em dimensões pares e ímpares.
  • Técnicas usadas em 2-variedades não se aplicam diretamente às 3-variedades.
  • Como 1-variedades são muito simples, não fornecem técnicas úteis que possam ser generalizadas de $n=1$ a $n=3$.
  • Por isso, precisamos de novas técnicas e métodos para entender 3-variedades.

Obrigado por sua atenção!